Lars von Trier, o controverso cineasta dinamarquês, em 2005 produziu um filme curioso: Manderlay – continuação do premiado Dogville (2003) e parte de uma trilogia inacabada, USA: Land of Opportunities. Tais películas ficaram famosas pela inovação nas filmagens, realizadas num galpão escuro, com iluminação precária e praticamente sem cenários – apenas demarcando o chão com fita branca.
Mas não é por isso que Manderlay chama a atenção. Enquanto em Dogville a personagem Grace está fugindo de seu pai gangster, em Manderlay ela o está acompanhando. Os carros estão parados em uma estrada e os dois estão discutindo. De repente, uma mulher negra sai de um portão e pede ajuda, dizendo que um homem está na iminência de ser chicoteado por seus senhores. A mulher saíra de Manderlay – uma fazenda de algodão que vive um sistema escravista. O problema é que já tinham passado 70 anos da abolição! Grace se espanta e resolve intervir.
Entram em Manderlay e impedem o castigo, mas são confrontados pela Senhora, a dona do local, e seus filhos. Os capangas de Grace ameaçam, a Senhora tem um mal súbito e morre, deixando, curiosamente, aqueles escravos completamente desnorteados. Wilhelm, que é o negro mais velho daquele grupo, chora ajoelhado à beira da cama da Senhora, o que deixa Grace confusa. Ela se aproxima e oferece um consolo sem palavra, mas o homem quebra o silêncio: “Tenho medo”. Grace diz: “Não há o que temer, levaremos todas as armas da família”. Mas ele responde: “Não. Tenho medo do que acontecerá agora. Temo não estarmos preparados para uma vida totalmente nova. Em Manderlay, os escravos jantam às 19h. A que horas jantam as pessoas livres?”.
Ou seja, aqueles negros não tinham a menor ideia de como viver sem que alguém comandasse e/ou aprovasse suas atividades mais rotineiras. Eram totalmente dependentes do arbítrio alheio. Então Grace decide ficar para ajudá-los nessa caminhada rumo à liberdade. O problema é que isso não ocorre, pois o tempo passa e os libertos continuam subservientes, indolentes e sem perspectiva. Talvez tenham percebido que a liberdade cobra um alto preço e optado por permanecer escravos.
O filme tem um tom irônico, e a escravidão é só um gancho para outros temas abordados indiretamente. No entanto, sempre me lembro dele quando vejo negros comportando-se como se a escravidão fosse um sistema ainda vigente, a subtrair direitos e cercear liberdades. Como se o racismo, produto imoral de tal sistema, ainda merecesse uma reação
à altura dos tempos da Casa Grande e da Senzala.
Por falar em cinema, o Oscar 2016 é um exemplo notório dessa mentalidade. A falta de negros indicados, pelo segundo ano consecutivo, fez o diretor Spike Lee propor, juntamente com o casal Will e Jada Pinkett Smith, um boicote à premiação. Ou seja, ao mesmo tempo que criticam um sistema, desejam que ele os reconheça; não pelo mérito, mas pela cor. Como se ainda precisassem ouvir da Senhora: “muito bem, meu filho”.
O que essas pessoas não percebem é que ser livre é, também, ser preterido, e cobrar reparação perene é voltar à escravidão. Ainda que a uma escravidão ideológica.
Disse bem o rapper Ice Cube sobre esse assunto em uma entrevista recente: “não fazemos filmes para a indústria, fazemos para os fãs […]. Isso é ridículo”. Mas os eternos escravos de Hollywood só querem mesmo é o reconhecimento dos senhores.
Artigo publicado no jornal Gazeta do Povo em 30/01/2016:
http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/e-o-oscar-vai-para-4bxrtca53hy53yro6ceij0hrk
Paulo Cruz é professor de Filosofia e mestrando em Ciências da Religião.
7 junho, 2016 at 12:30 am
Olá Paulo. Fiz um comentário há alguns dias em um post sobre o Eric Voegelin e você me respondeu, obrigado…
Mas não é sobre isso que quero tratar.
Estou fazendo mestrado na sociologia em uma universidade pública. Dá pra imaginar o que é isso nos nossos dias? hehe..
Estou tentando me cercar da literatura que possa me manter são em meio ao caos ideológico. Retomando o que o próprio Voegelin falou: “para que filosofar? Para recuperar a realidade”.
Bem, neste últimos tempos tenho pensado bastante a respeito sobre a questão do racismo; creio que a humanidade tem um passado horroroso quanto a esta questão. Porém, não engulo a tal da dívida histórica, não engulo toda essa história propagada pela esquerda (mesmo não sendo branco, mas um misto de negro, índio, branco e algo mais).
Apesar disto, não me sinto preparado para lidar com estas questões em um meio tão apegado a isto.
Você poderia me indicar um roteiro de estudos sobre estas questões? (racismo, escravidão etc…)
Grande abraço! Que Deus lhe abençoe!
24 junho, 2016 at 11:45 pm
Caro Paulo, me perdoe a demora para responder.
O que tenho em mente, e seguindo mesmo o conselho de Voegelin, é que só é possível tratar ideologia com a verdade. E a verdade não está em estudos voltados diretamente para o tema, mas em autores que combateram esse processo de deteriorização da realidade. Penso em Platão e Aristóteles, que nos ajudam a compreender esse processo e a combatê-lo racionalmente.
Mas se quiser ler algo que desmantelará a visão vitimista da escravidão, leia os abolicionistas (Nabuco, Patrocínio, Rebouças, José Bonifácio etc.).
Abraço!
19 janeiro, 2017 at 10:57 am
“Ou seja, ao mesmo tempo que criticam um sistema, desejam que ele os reconheça; não pelo mérito, mas pela cor. Como se ainda precisassem ouvir da Senhora: “muito bem, meu filho”.
Essa frase expressa exactamente o que eu pensei e o que eu queria falar, mas de forma muito mas articulada. Well done!! Belo texto.
30 janeiro, 2017 at 3:38 pm
Obrigado, meu caro! E veja como funcionou a choradeira: a quantidade de negros indicados esse ano é a maior da História.
Abraço.
24 novembro, 2017 at 11:01 pm
Que texto foda! Me emocionou. Parabéns!
24 novembro, 2017 at 11:49 pm
Obrigado!