Artigo publicado em 07 de outubro de 2015 no jornal Gazeta do Povo.
“Quem construiu as pirâmides?, gritou o orador ismaelita. Um negro. Quem inventou a circulação do sangue? Um negro. […] Quem descobriu a América? […] Como tão nobremente escreveu o escritor negro Karl Marx, […] África para o trabalhador africano, Europa para o trabalhador africano, Ásia, Oceania, América, Ártico e Antártida para o trabalhador africano.”
O discurso acima poderia ter sido escrito por Cheikh Anta Diop – antropólogo senegalês, coordenador da História Geral da África, da Unesco –, cuja tese era de que o Egito Antigo não só foi o berço da civilização, mas uma nação negra e influente, fonte, inclusive, da filosofia grega, de onde Platão e Aristóteles teriam roubado, dentre outras coisas, sua cosmogonia. Mas não: o excerto pertence ao romance Scoop, do satirista britânico Evelyn Waugh, e retrata muito bem o caráter megalômano da teoria de Diop.
A ideia pan-africanista busca uma identidade soberana negra, africana na diáspora, e ganhou força no início do século 20, com Marcus Garvey e W.E.B. Du Bois; demonstra o desejo de autoafirmação dos negros americanos após o fim da escravidão. Du Bois falava dos laços afetivos com a “mãe pátria”, e garantia que os negros tinham uma mensagem positiva para oferecer enquanto “raça negra”; e reacendeu o debate (eugenista e europeu) acerca do racismo biológico.
A tese de Du Bois é romântica, atraente, mas inconsistente. Primeiro, porque o conceito de raças, no sentido biológico, é falso – e Du Bois não conseguiu desvencilhar-se dele. E, depois, porque tal unidade africana nunca existiu na África.
Recentemente, os teóricos afrocentristas embriagaram-se de fontes francesas (pode?) – principalmente Pierre Bourdieu e Michel Foucault, figuras onipresentes nas teses acadêmicas esquerdistas – e na ideologia do multiculturalismo, e termos como “apropriação cultural” e “poder simbólico” tornaram-se a chave-mestra do debate racial contemporâneo.
Daí que a investida mais recente do movimento negro é a apropriação cultural de teorias europeias para defender a exclusividade de uma cultura negra como “símbolo de luta”. Assim, reivindicam o controle sobre o que as pessoas podem usar (e dizer) pela cor de sua pele; ou, pior ainda, por sua “identificação cultural” – veja o caso dos turbantes. Invertem o famigerado “Colored Only” da segregação americana, e assinam um atestado de incoerência. No Brasil, esse terrorismo ideológico cerceia a liberdade das pessoas e cria um falso separatismo num país majoritariamente miscigenado.
Paradoxalmente, o pan-africanista Du Bois, primeiro negro a obter um doutorado em Harvard, não era separatista. Culto, elegante e de escrita requintada – The Souls of Black Folk encantou o eminente filósofo William James, seu professor –, sabia o que era bom. Nas palavras do filósofo anglo-ganês Kwame Appiah:
“[Du Bois] era um homem de esquerda, mas um elitista e um dândi, que desenvolveu a noção de que a comunidade afroamericana deveria ser conduzida pelo que chamou de ‘Talented Tenth’ (algo como a Décima Parte Talentosa), uma elite intelectual negra que lutaria por seus direitos no campo das ideias, sem negar o que havia de melhor na cultura ocidental”.
Como ele mesmo disse: “além da linha do preconceito, caminho de braços dados com Balzac e Dumas […] Assim, casado com a Verdade, vivo por sobre o Véu”.
E nós, o que fizemos? Trocamos a Décima Parte Talentosa por uma turba de histéricos.
Paulo Cruz
2 janeiro, 2016 at 7:03 pm
Perfeito texto Paulo ….Parabéns!!
24 junho, 2016 at 11:27 pm
Aeee prof° você é o melhor! Me deixa louca em sala de aula, me confunde em alguns pontos, me deixa brava em outros, mais sempre esclarece muitas coisas que eu não consigo assimilar! Obrigada por tudo que você traz! Da sua aluna Camila do Homero beijos! 😉
24 junho, 2016 at 11:37 pm
Obrigado, Camila! E obrigado pela leitura do blog. Fico feliz em poder contribuir — mesmo te enlouquecendo um pouquinho (rsrs).
Boas férias! Beijo.
10 setembro, 2016 at 2:31 am
[…] coisa segregada que querem hoje impor à periferia. Ainda não havia se disseminado a bobagem da Apropriação Cultural, e rappers como Tupac Shakur (2 Pac), puderam estudar ballet e representar peças de Shakespeare […]
11 fevereiro, 2017 at 3:30 pm
Parabéns pelo excelente texto.