“Homo homini lupus”

Leviatan

Leviatã (Leviathan) – Rússia/2014

Dir.: Andrey Zvyagintsev

“Poderás tirar com anzol o leviatã, ou ligarás a sua língua com uma corda?
Podes pôr um anzol no seu nariz, ou com um gancho furar a sua queixada?
Porventura multiplicará as súplicas para contigo, ou brandamente falará?
Fará ele aliança contigo, ou o tomarás tu por servo para sempre?
Brincarás com ele, como se fora um passarinho, ou o prenderás para tuas meninas?
Os teus companheiros farão dele um banquete, ou o repartirão entre os negociantes?
Encherás a sua pele de ganchos, ou a sua cabeça com arpões de pescadores?
Põe a tua mão sobre ele, lembra-te da peleja, e nunca mais tal intentarás.
Eis que é vã a esperança de apanhá-lo; pois não será o homem derrubado só ao vê-lo?”
(Jó, 41:1-9)

Meu saudoso pai, quando da ocasião de sua morte, andava deveras angustiado por conta de um processo que movera contra uma grande Rede de Hospitais, para qual ele havia prestado serviços por mais de 5 anos, e sido dispensado sem nenhum motivo e com uma enorme quantia em honorários por receber.

Dr. Antônio da Cruz, advogado desde 1979, mesmo tendo toda a lei e a justiça a seu favor, perdeu em praticamente TODAS as instâncias por onde o processo tramitou – em Guarulhos, onde os proprietários da Rede têm ligações políticas gigantescas –, faltando somente a instância Federal. O problema é que seus algozes intentavam ferozmente penhorar a casa de minha mãe (único bem de família), que, inclusive, já tinha recebido visita de um oficial de justiça e estava igualmente desesperada. Era uma corrida contra o tempo.

Por fim, o processo foi arquivado, pois, em março de 2012, Dr. Antônio foi diagnosticado com um câncer de pulmão que, em menos de 8 meses, o levou à sepultura.

Tenho para mim que o câncer que vitimou meu pai fora nele alimentado por essa angústia. Foi esse processo judicial que lhe tirou o riso dos lábios, a sabedoria da mente e o fôlego de vida.

O filme Leviatã é isso: a história de um homem contra uma avassaladora máquina de corrupção.

Kolya é um mecânico cuja propriedade – numa paradisíaca península do Mar de Barents, no Ártico – está envolvida num processo de desapropriação movido pelo prefeito (Vadim), a personificação da corrupção e da decadência humanas.

Um exemplo da generalização dessa barbárie é um diálogo do padre ortodoxo local com o prefeito, no qual fica bastante evidente que não é só a lei dos homens que está sendo subvertida, a Lei de Deus também:

– Controle-se, Vadim. E não se preocupe. Está fazendo o trabalho de Deus. Dizem que as boas obras são feitas com calma e alegria, mas não se esqueça que o inimigo está sempre pronto e não dorme.

– Esse é o problema. Você sabe… Parece que tudo está dando errado. Estou inseguro. O que acontece é…

– Não me diga nada. Não está no confessionário. Você e eu trabalhamos pela mesma causa. Você tem seu território, eu tenho o meu.

– Eu entendo. Só sinto que não é fácil…

– Eu lhe disse há poucos dias, e vou lhe dizer novamente: Todo poder vem de Deus. Onde há poder, há força. Se você tem poder, resolva seus problemas usando sua força. Não busque ajuda, ou seu inimigo vai pensar que você é fraco. Honestamente, tenho que te dar conselhos como a uma criança.

É contra isso que Kolya, um homem comum já quase esgotado por problemas familiares, terá de lutar. E não será fácil; para não dizer impossível!

A cena de uma carcaça de baleia na praia é o exemplo de que, na terra dos Homens Ocos, nem mesmo o “monstro marinho” resiste.

Com alusões críticas bastante claras ao governo Putin e ao Comunismo, Leviatã é um filme denso e inebriante como a vodka (aliás, consumida em quantidades alarmantes no desenrolar da história). A fotografia é estonteante, as atuações fazem jus ao drama dos protagonistas, e a direção de Andrey Zvyagintsev é bastante competente. A trilha sonora de Philip Glass dispensa comentários!

[…]
Sua alma se estendeu cruzando os céus
Que se estiolam por detrás dos edifícios,
Ou a pisotearam insistentes pés
Às quatro e às cinco e às seis horas da tarde;
E curtos dedos firmes a encher cachimbos,
E jornais vespertinos, e olhos
Convictos de certas certezas,
A consciÊncia de uma rua enegrecida
Impaciente por se apoderar do mundo.
[…]

(T. S. Eliot, “Prelúdios”. Poesia Completa, ARX. Tradução de Ivan Junqueira)

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