C. S. Lewis e a formação do imaginário

Die Chroniken von Narnia: Der König von Narnia

[…] Mas, quando amanheceu, caía uma chuva enjoada, tão grossa que, da janela, quase não se viam as montanhas, nem os bosques, nem sequer o riacho do quintal.

– Tinha certeza de que ia chover! – disse Edmundo.

Haviam acabado de tomar café com o professor e estavam na sala que lhes fora destinada, um aposento grande e sombrio, com quatro janelas.

– Não fique reclamando e resmungando o tempo todo – disse Susana para Edmundo. – Aposto que, daqui à uma hora, o tempo melhora. Enquanto isso, temos um rádio e livros à vontade.

– Isso não me interessa – disse Pedro. – Vou é explorar a casa.

Todos concordaram, e foi assim que começaram as aventuras. Era o tipo da casa que parece não ter fim, cheia de lugares surpreendentes. As primeiras portas que entreabriram davam para quartos desabitados, como, aliás, já esperavam. Mas não demoraram a encontrar um salão cheio de quadros, onde também acharam uma coleção de armaduras. Havia a seguir uma sala forrada de verde, com uma harpa encostada a um canto. Depois de terem descido três degraus e subido cinco, chegaram a um pequeno saguão com uma porta, que dava para uma varanda, e ainda para uma série de salas, todas cobertas de livros de alto a baixo. Os livros eram quase todos muito antigos e enormes. Pouco depois, espiavam uma sala onde só existia um imenso guarda-roupa, daqueles que têm um espelho na porta. Nada mais na sala, a não ser uma mosca morta no peitoril da janela.

– Aqui não tem nada! – disse Pedro, e saíram todos da sala.

Todos menos Lúcia. Para ela, valia a pena tentar abrir a porta do guarda-roupa, mesmo tendo quase certeza de que estava fechada à chave. Ficou assim muito admirada ao ver que se abriu facilmente, deixando cair duas bolinhas de naftalina. Lá dentro viu dependurados compridos casacos de peles. Lúcia gostava muito do cheiro e do contato das peles. Pulou para dentro e se meteu entre os casacos, deixando que eles lhe afagassem o rosto. Não fechou a porta, naturalmente: sabia muito bem que seria uma tolice fechar-se dentro de um guarda-roupa. Foi avançando cada vez mais e descobriu que havia uma segunda fila de casacos pendurada atrás da primeira. Ali já estava meio escuro, e ela estendia os braços, para não bater com a cara no fundo do móvel. Deu mais uns passos, esperando sempre tocar no fundo com as pontas dos dedos. Mas nada encontrava.

“Deve ser um guarda-roupa colossal!”, pensou Lúcia, avançando ainda mais. De repente notou que estava pisando qualquer coisa que se desfazia debaixo de seus pés. Seriam outras bolinhas de naftalina? Abaixou-se para examinar com as mãos. Em vez de achar o fundo liso e duro do guarda-roupa, encontrou uma coisa macia e fria, que se esfarelava nos dedos. “É muito estranho”, pensou, e deu mais um ou dois passos. O que agora lhe roçava o rosto e as mãos não eram mais as peles macias, mas algo duro, áspero e que espetava.

– Ora essa! Parecem ramos de árvores!

Só então viu que havia uma luz em frente, não a dois palmos do nariz, onde deveria estar o fundo do guarda-roupa, mas lá longe. Caía-lhe em cima uma coisa leve e macia. Um minuto depois, percebeu que estava num bosque, à noite, e que havia neve sob os seus pés, enquanto outros flocos tombavam do ar. Sentiu-se um pouco assustada, mas, ao mesmo tempo, excitada e cheia de curiosidade. Olhando para trás, lá no fundo, por entre os troncos sombrios das árvores, viu ainda a porta aberta do guarda-roupa e também distinguiu a sala vazia de onde havia saído. Naturalmente, deixara a porta aberta, porque bem sabia que é uma estupidez uma pessoa fechar-se num guarda-roupa[1].

O trecho acima é bastante significativo; faz parte da mais famosa obra de C. S. Lewis: O Leão, a Feiticeira e o guarda-roupas — um dos sete livros da série As Crônicas de Nárnia, sucesso absoluto do gênero, com mais de 100 milhões de cópias vendidas, e traduzido para mais de 40 idiomas.

As Crônicas… foram a grande investida de Lewis no gênero literário que, desde a sua infância, mais o fascinara. Mais do que isso, foi o gênero responsável por sua formação intelectual. Sua relação com os chamados Contos de Fadas foi duradoura a ponto de ocupar boa parte de sua vida acadêmica. Suas reflexões a esse respeito vão ao encontro das obras de outros grandes intelectuais que o influenciaram  influência profunda, que foi capaz de moldar a essência de seu pensamento. Ele mesmo nos diz:

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Lewis, um leitor voraz!

O homem imaginativo em mim é mais velho, mais continuamente operativo e, nesse sentido, mais básico que o escritor religioso ou o crítico. Foi ele quem, numa primeira tentativa (com pouco sucesso), me impulsionou a ser um poeta. Foi ele quem, em resposta à poesia dos outros, me fez um crítico, e, em defesa dessa faceta, por vezes um polemista crítico. Foi ele que, depois da minha conversão, levou-me a encarnar minha fé religiosa em formas simbólicas ou mitopoéticas, variando de Screwtape a uma espécie de teologia de ficção científica. E foi, naturalmente, aquele que me fez, nos últimos anos, escrever a série de histórias sobre Nárnia para crianças; não perguntando o que as crianças queriam e, em seguida, me esforçando para me adaptar (isso não foi necessário), mas porque o Conto de Fadas foi o gênero que melhor se ajustou ao que eu queria dizer.[2]

Oxford, Inklings e retorno ao Cristianismo

Clive Staples Lewis (ou Jack, como gostava de ser chamado) nasceu em Belfast, na Irlanda do Norte, em 1898, filho de um advogado e da filha de um pastor. Cresceu num ambiente de cristãos nominais e nada fervorosos. Perdeu a mãe aos nove anos de idade, experiência que o marcara profundamente[3].

Depois de passar por alguns professores particulares, recebeu uma bolsa de estudos em Oxford, e, após concluir seus estudos, conseguiu um cargo de instrutor no Magdalen College, de em Oxford, onde permaneceria por 29 anos!

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The Inklings

Em Oxford conheceu homens cuja grande amizade desfrutou até o final de sua vida, sobretudo J. R. R. Tolkien, Nevill Coghill, Hugo Dyson, Owen Barfileld e Charles Williams. Com estes (e outros) formaria os Inklings, uma espécie de confraria intelectual que se reunia para ler e debater seus temas favoritos. O grupo existiu formalmente de 1933 até meados de 1949; e, num Pub em Oxford chamado The Eagle and Child, ou no próprio escritório de Lewis no Magdalen College, foram gestadas e discutidas as grandes obras destes homens — com destaque para O Senhor dos Anéis, de Tolkien, e As Crônicas de Nárnia, de Lewis.

Foi também por influência dos Inklings que Lewis voltou ao cristianismo e se tornou um dos mais famosos apologistas cristãos do séc. XX.

 

Imaginação Moral

Toda a longa jornada intelectual e de fé de C. S. Lewis foi alimentada pela mitologia e pela imaginação.

Ele conta que uma de suas primeiras e mais marcantes experiências imaginativas ocorreu ao ler uma tradução que o poeta norte-americano Longfellow fez do poema Drapa, escrito pelo sueco Esaías Tegner, e cita um trecho:

I heard a voice, that cried,

“Balder the Beautiful

Is dead, is dead!”

[Ouvi uma voz, que chorava,

“Balder, o Belo,

Está morto, está morto!”][4]

Um biógrafo de Lewis, Colin Durez, “lê” o poema assim:

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“A Morte de Balder”, by Christoffer Wilhelm Eckersberg (1817)

O pálido cadáver do sol morto é carregado através do firmamento sententrional. Lufadas de Niffelheim erguem os lençóis de névoa ao seu redor quando ele passa. Balder está morto — Balder, o Belo, deus do sol de verão, mais bonito de todos os deuses! A luz irradia de sua fronte, há runas em sua língua, assim como na espada do guerreiro. Todas as coisas na terra e no ar estão obrigadas, por mágico feitiço, a jamais feri-lo; mesmo as plantas e pedras — todas, exceto o visco! Hoeder, velho deus cego e silencioso, inocentemente trespassa o brando peito de Balder com sua lança afiada, feita por artifício com o visco maldito![5]

Outro biógrafo, David Downing, relata:

Embora, na época, Lewis não tivesse a mínima ideia de quem era Balder, tais versos o preencheram com um tipo particular de alegria, que ele denominou “borealidade” (ou “nortidade”), uma visão austera e extática das coisas “frias, espaçosas, severas, pálidas e remotas”.

Uma pequena explicação: Balder, o Belo, é um deus da mitologia nórdica, filho de Odin e Friga. Após ter vários sonhos em que sua vida corria perigo, contou seus tormentos aos deuses e esses resolveram ajudá-lo. Então Friga, sua mãe, conseguiu que o Fogo, a Água, o Ferro e todos os outros metais, as Pedras, as Árvores, as Feras, as Aves, os Peixes e todos os animais que rastejam, jurassem não lhe fazer mal. Com isso, os deuses passaram a brincar com Balder, atirando-lhe coisas como num alvo. Porém, o astuto Loki, cevado de inveja, descobriu que uma planta chamada Visco poderia ferir o deus protegido. Colheu dessa planta, passou na ponta de uma lança e deu nas mãos de Hoeder, o deus cego que não participava da brincadeira por não enxergar o “alvo”. Loki direcionou as mãos de Hoeder, que feriu Balder e o matou.

A história de Balder, nos versos de Tegner/Longfellow, causou uma marca indelével no pequeno Jack, um garoto “produto de longos corredores, cômodos vazios e banhados de sol, silêncios no piso superior, sótãos explorados em solidão, ruídos distantes de caixas-d’água e tubos murmurantes, e o barulho do vento sobre as telhas. Além disso, de livros infindáveis”[6].

As óperas de Richard Wagner também marcaram a infância de Lewis, sobretudo a saga O Anel dos Nibelungos. Ele conta que gastava o dinheiro de sua mesada nas resenhas e discos de Wagner, fazendo a associação entre Siegfried — o herói da saga wagneriana — e Balder, o Belo deus[7].

Toda essa profunda Admiração[8] pelos dos mitos e pelos contos de fadas foi responsável pela formação de sua Imaginação Moral, termo do filósofo Edmund Burke para descrever aquela virtude “que o coração possui e o entendimento ratifica, como necessária para coibir os defeitos de nossa natureza nua e trêmula e para elevá-la à dignidade em nossa própria avaliação”[9].

Para Russell Kirk, filósofo, historiador e crítico literário norte-americano, a Imaginação Moral trata de ideias que “inferidas dos séculos de experiência humana, […] são novamente expressas de uma era para a outra”[10]. E para G. K. Chesterton — que escreveu com brilhantismo sobre o assunto em seu Ortodoxia —, a Ética da Terra dos Elfos é o fruto da mais pura moralidade ancestral e origem de sua filosofia particular. Vale citá-lo:

Minha primeira e última filosofia, aquela na qual acredito com certeza absoluta, eu a aprendi na creche. Geralmente a aprendi de uma babá; isto é, daquela solene sacerdotisa ao mesmo tempo da democracia e da tradição, indicada pelos astros. Aquilo em que eu mais acreditava naquela época, aquilo em que mais acredito atualmente, são coisas que chamamos de contos de fadas. Eles me parecem inteiramente razoáveis. Não são fantasias: comparadas com eles, outras coisas são fantásticas. Comparados com eles, a religião e o racionalismo são ambos anormais, embora a religião esteja anormalmente certa e o racionalismo anormalmente errado. O país das fadas nada mais é do que o país ensolarado do senso comum. Não é a terra que julga o céu, mas o céu que julga a terra; assim, para mim pelo menos, não era a terra que criticava a Terra dos Elfos, mas a Terra dos Elfos que criticava a terra. Conheci o pé de feijão mágico antes de provar feijão; tive certeza sobre o homem na Lua antes de ter certeza sobre a Lua […] As antigas babás não falavam às crianças sobre a relva, mas sobre fadas que dançam sobre a relva; e os antigos gregos não conseguiam ver as árvores devido às dríades. […] Mas não estou preocupado com nenhum dos estatutos da Terra dos Elfos em separado, mas sim com o espírito total de sua lei, que aprendi antes de saber falar e hei de reter quando não mais puder escrever. Estou preocupado com certo modo de olhar para a vida, que foi criado em mim pelos contos de fada, mas foi, desde àquela época, humildemente ratificado pelos simples fatos.[11].

Lewis, absorvendo e continuando o legado intelectual dessa tradição, associou essa ideia ao que chamou de Tao, conceito emprestado da sabedoria oriental e desenvolvido em sua obra A Abolição do Homem:

[…] é a realidade além de todos os atributos, o abismo que era antes do Próprio Criador. Ele é a Natureza, é a Via, o Caminho. É a Via pela qual o universo prossegue, a Via da qual tudo eternamente emerge, imóvel e tranqüilamente, para o espaço e o tempo. É também a Via que todos os homens deveriam trilhar, imitando essa progressão cósmica e supracósmica, amoldando todas as atividades a esse grande modelo. “No ritual”, dizem os Analectos, “é a harmonia com a Natureza que é louvada”. Os antigos judeus igualmente louvavam a Lei como “verdadeira” […] É a doutrina do valor objetivo, a convicção de que certas posturas são realmente verdadeiras, e outras realmente falsas a respeito do que é o universo e do que somos nós.[12]

Tal realidade está impressa nos contos de fadas de uma maneira muito particular e profunda. E para Lewis, uma característica marcante desse tipo de história é

[…] a presença de seres não-humanos que, não obstante, comportam-se, em diversos graus, como seres humanos: gigantes, anões e animais falantes. A meu ver, eles são, no mínimo (pois é possível que tenham muitas outras fontes de poder e beleza), um hieróglifo admirável que veicula uma psicologia, uma tipologia de caráter, de modo muito mais sucinto que o romance, e aos leitores, que um romance ainda não poderia atingir”[13].

Escrever (somente?) para crianças

Num ensaio intitulado Três maneiras de escrever para crianças, Lewis expõe sua motivação e seu “método” para escrever histórias de fantasia. Defendendo-se daqueles que diziam que as histórias infantis eram um departamento especial, cuja função era entreter e entregar às crianças aquilo que elas “queriam”, diz que os contos de fadas eram “a melhor forma artística de expressar algo que você quer dizer”[14]. E, evidentemente, isso não se restringia – ou restringe – às crianças, pois “uma história para crianças de que só as crianças gostam é uma história ruim”[15]. E completa:

O conto de fadas é acusado de dar às crianças uma falsa impressão do mundo em que vivem. Na minha opinião, porém, nenhum outro tipo de literatura que a crianças poderiam ler lhes daria uma impressão tão verdadeira. As histórias infantis que se pretendem “realistas” tendem muito mais a enganar as crianças.[16]

Lewis tinha plena consciência dos limites da Fantasia, sua função e apreciação pelas crianças. Inclusive, fez uma distinção do termo entre o devaneio irresponsável e a imaginação criativa de onde nascem as histórias. Sobre isso, discorreu brilhantemente em seu A Experiência de Ler (ou Um Experimento em Crítica Literária, Pt-Br), chamando o devaneio de Castelos-no-Ar-Doentios e a imaginação criativa de Castelos-no-Ar-Normais[17].

É curioso perceber como Lewis espalha os conceitos em suas histórias! A citação inicial deste ensaio termina com o narrador dizendo que Lúcia ao entrar em Nárnia deixou a porta aberta, pois “sabia que é uma estupidez uma pessoa fechar-se num guarda-roupa”. É muito bom entrar, mas é preciso sair.

Ainda sobre seu método, esclarece:

Essa forma me permite, ou obriga, a deixar de fora certas coisas que eu queria mesmo deixar de fora: obriga-me a concentrar toda a força do livro nas palavras e atos dos personagens. Ela coíbe o que um crítico generoso, mas perspicaz, chamou de “o demônio expositivo” que vive em mim, e também impõe certas restrições muito frutíferas ao tamanho da obra[18].

Em seu texto, Lewis cita outro importante ensaio, escrito por seu amigo J. R. R. Tolkien, e diz que “talvez seja a contribuição mais importante que alguém já tenha dado a esse tema”[19]. O ensaio de Tolkien é mesmo monumental! Discorrendo sobre as origens e características daquilo que ele chama de histórias do Belo Reino (Faërie), nos apresenta um vislumbre muito preciso e precioso do mundo das fadas.

Recuperação, Escape e Consolo

Segundo Tolkien, os contos de fadas afetam o ser humano de três maneiras: Recuperação, Escape e Consolo.

A Recuperação é um modo de readquirirmos o deslumbramento, a admiração pelas coisas que se tornaram corriqueiras em nossos dias, coisas com as quais não nos importamos mais, mas que carregam em si mesmas o mistério da vida. Como diz Tolkien:

Precisamos olhar o verde outra vez, e nos surpreendermos de novo (mas sem sermos cegados) com o azul, o amarelo e o vermelho. Precisamos encontrar o centauro e o dragão, e depois, talvez, contemplar de repente, como os antigos pastores, os carneiros, os cães, os cavalos e os lobos. As histórias de fadas nos ajudam a realizar essa recuperação. […] A recuperação (que inclui o retorno e a renovação da saúde) é uma re-tomada — a retomada de uma visão clara. Não digo “ver as coisas como elas são”, porque assim me envolveria com os filósofos, porém posso arriscar-me a dizer “ver as coisas como nós devemos (ou deveríamos) vê-las” — como coisas à parte de nós mesmos[20].

Temos um exemplo singular do que diz Tolkien na história O sobrinho do mago, das Crônicas de Lewis. Nesse conto há uma cena sublime, da criação de Nárnia. O garoto Digory, de posse dos anéis mágicos de seu tio, transportou a todos, do meio de uma confusão causada pela feiticeira Jadis, para o Bosque Entre Dois Mundos e, de lá, para um mundo de completa escuridão. Quando, de repente:

No escuro, finalmente, alguma coisa começava a acontecer. Uma voz cantava. Muito longe. Nem mesmo era possível precisar a direção de onde vinha. Parecia vir de todas as direções, e Digory chegou a pensar que vinha do fundo da terra. Certas notas pareciam a voz da própria terra. O canto não tinha palavras. Nem chegava a ser um canto. De qualquer forma, era o mais belo som que ele já ouvira. Tão bonito que chegava a ser quase insuportável. O cavalo também parecia estar gostando muito, pois relinchou como faria um cavalo de carga se, depois de anos e anos de duro trabalho, se encontrasse livre na mesma campina onde correra quando jovem e, de repente, visse um velho amigo cruzando a relva e trazendo-lhe um torrão de açúcar.

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O Sobrinho do Mago

E duas coisas maravilhosas aconteceram ao mesmo tempo. Uma: outras vozes reuniram-se à primeira, e era impossível contá-las. Vozes harmonizadas à primeira, mais agudas, vibrantes, argênteas. Outra: a escuridão em cima cintilava de estrelas. Elas não chegaram devagar, uma por uma, como fazem nas noites de verão. Um momento antes, nada havia lá em cima, só a escuridão; num segundo, milhares e milhares de pontos de luz saltaram, estrelas isoladas, constelações, planetas, muito mais reluzentes e maiores do que em nosso mundo. Não havia nuvens. As novas estrelas e as novas vozes surgiram exatamente ao mesmo tempo. Se você tivesse visto e ouvido aquilo, tal como Digory, teria tido a certeza de que eram as estrelas que estavam cantando e que fora a Primeira Voz, a voz profunda, que as fizera aparecer e cantar.

– Louvado seja! – disse o cocheiro. – Se eu soubesse que existiam coisas assim, teria sido um homem muito melhor[21].

A narrativa se segue até o completo surgimento da belíssima Nárnia, sob o canto de Aslam, o Grande Leão.

Esse é o tipo de recuperação de que fala Tolkien. A maravilha de perceber, por meio dos contos de fadas, aquilo que Chesterton diz tão bem-humoradamente: “Eu sempre acreditava que o mundo envolvia uma mágica: agora achava que talvez ele envolvesse um mágico”[22].

O Escape envolve uma ligeira sutileza. Escape não é a mesma coisa que escapismo. Com essa distinção Tolkien quer dizer que não se pode confundir “o escape do prisioneiro com a fuga do desertor”[23]. Sua concepção de escape trata do desejo de ultrapassar o ordinário e, muitas vezes, aterrador cotidiano.

Outro exemplo pode ser retirado das Crônicas de Lewis. Na história O Cavalo e seu menino, acompanhamos a história de um garoto chamado Shasta, que vive infeliz com um homem cruel e sagaz que diz ser o seu pai; mas ele, em seu íntimo, sente que não é seu filho. Quando descobre, de fato, que não é filho de Arriche (o homem cruel) — e descobre por conta de uma negociação que seu padrasto faz para vendê-lo a um tarcaã (senhor de alta linhagem) —, pensa: “Quem sabe não serei filho de algum tarcaã… ou filho até do Tisroc — que ele viva para sempre! —, ou filho de um deus?”[24]

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O Cavalo e seu Menino

E então Shasta foge, em companhia de um cavalo falante — de nome Bri —, para uma grande aventura em Nárnia, terra que sempre sonhou conhecer. E nós, ao lermos a história de Shasta, participamos de sua aventura e fazemos de seu escape o nosso!

Por fim, Tolkien fala do Consolo, mais precisamente o Consolo do Final Feliz. Tolkien diz que, assim como a Tragédia é verdadeira forma do Drama, o Consolo do Final Feliz é a verdadeira forma das histórias de fadas. Para isso criou um termo: Eucatástrofe. Eucatástrofe é um contrário da Discatástrofe, ou seja:

[…] a repentina “virada” jubilosa (porque não há um final verdadeiro em qualquer conto de fadas), essa alegria que é uma das coisas que as histórias de fadas conseguem produzir supremamente bem não é essencialmente “escapista” nem “fugitiva”. Em seu ambiente de contos de fadas — ou de outro mundo — ela é uma graça repentina e milagrosa: nunca se pode confiar que ocorra outra vez. Ela não nega a existência da discatástrofe, do pesar e do fracasso. Ela nega (em face de muitas evidências, por assim dizer) a derrota final universal, e nessa medida é evangelium, dando um vislumbre fugaz da Alegria, Alegria além das muralhas do mundo, pungente como o pesar […] Na eucatástrofe enxergamos, numa breve visão, que a resposta pode ser maior pode ser um lampejo longínquo ou um eco do evangelium no mundo real[25].

E arremata:

Eu me arriscaria dizer que, abordando a História Cristã nessa direção, por muito tempo tive a sensação de que Deus redimiu as corruptas criaturas-criadoras, os homens, de maneira adequada a esse aspecto de sua estranha natureza, e também a outros. Os Evangelhos contém uma história de fadas, ou uma narrativa maior que engloba toda a essência delas. Contém muitas maravilhas peculiarmente artísticas, belas e emocionantes: “míticas” no seu significado perfeito e encerrado em si mesmo e entre as maravilhas está a maior e mais completa eucatástrofe concebível. […] O Evangelium não ab-rogou as lendas, ele as consagrou; em especial o “final feliz”[26].

Termino citando um exemplo espetacular de eucatástrofe que está em A última batalha, última história das Crônicas. Para não tirar-vos o gosto da leitura — que vos advirto a fazer —, cito somente um pequeno trecho, onde o professor Kirke (ou Lorde Digory), descobre que há outra Nárnia, mais Bela, Perfeita e Verdadeira que aquela que os quatro irmãos conheceram no início de suas aventuras.

— Ouça, Pedro [disse Lorde Digory]. Quando Aslam disse que vocês nunca mais poderiam voltar a Nárnia, ele se referia à Nárnia em que vocês estavam pensando. Aquela, porém, não era a verdadeira Nárnia. Ela teve um começo e um fim. Era apenas uma sombra, uma cópia da verdadeira Nárnia que sempre existiu e sempre existirá aqui, da mesma forma que o nosso mundo é apenas uma sombra ou uma cópia de algo do verdadeiro mundo de Aslam. Lúcia, você não precisa prantear Nárnia. Todas as criaturas queridas, tudo o que importava da velha Nárnia foi trazido aqui para a verdadeira Nárnia, através daquela Porta. Tudo é diferente, sim; tão diferente quanto uma coisa real difere de sua sombra, ou como a vida real difere de um sonho.

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A Última Batalha

Enquanto ele falava essas palavras, sua voz fez todo mundo estremecer como ao som de uma trombeta. Mas quando ele acrescentou: — Está tudo em Platão, tudo em Platão… Caramba! Gostaria de saber o que essas crianças aprendem na escola! —, os mais velhos desataram a rir. Era exatamente isso que ele costumava dizer muito tempo atrás, naquele outro mundo, onde sua barba era grisalha em vez de dourada”[27].

Resta-me dizer que a leitura dAs Crônicas de Nárnia certamente será, para as crianças e jovens, um excelente exercício de formação do imaginário. E para os adultos, um resgate mais que necessário.

Boa leitura!

Paulo Cruz

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 Referências bibliográficas

BULLFINCH, Thomas.  O livro de ouro da mitologia. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

BURKE, Edmund. Reflexões sobre a revolução na França. 2012. Rio de Janeiro: Top Books, 2012.

CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão, 2007.

DOWNING, David. C. S. Lewis – o mais relutante dos convertidos. São Paulo: Vida, 2006.

DURIEZ, Colin. Tolkien e C. S. Lewis – O dom da amizade. São Paulo: Nova Fronteira, 2006.

KIRK, Russel. T. S. Eliot, a imaginação moral do século XX. São Paulo: É Realizações, 2011.

LEWIS, C. S. A experiência de ler. Lisboa: Porto, 2003.

LEWIS, C. S. A Abolição do Homem. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

LEWIS, C. S. As crônicas de Nárnia – Volume Único. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

LEWIS, C. S. Surpreendido pela Alegria. São Paulo: Mundo Cristão, 1998.

TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de fadas. São Paulo: Conrad, 2006.


[1] LEWIS, C. S.. O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupas, pp. 13-15.

[2] http://www.discovery.org/a/518 (tradução minha).

[3] Com a morte de minha mãe, toda a felicidade serena, tudo o que era tranquilo e confiável, desapareceu de minha vida. Estava por vir muita diversão, muitos prazeres, muitas punhaladas da Alegria; mas nada da velha segurança. Agora era mar e ilhas; o grande continente afundara como Atlântida. (LEWIS, 1998, p. 28).

[4] LEWIS, 1998, p. 24.

[5] DURIEZ, 2006, p. 91.

[6] LEWIS, Op. Cit., 1998, p. 18.

[7] Cf. LEWIS, 1998, pp. 78-81.

[8] Thaumazein (Gr.) ou Mirandum (Lt.), segundo Aristóteles, o que também deu origem à Filosofia.

[9] BURKE, Edmund, 2012, p. 245.

[10] KIRK, 2011, p. 140.

[11] CHESTERTON, 2007, pp. 82,83.

[12] LEWIS, 2005, pp. 16,17.

[13] LEWIS, 2010, pp. 745.

[14] LEWIS, Ibid., pp. 742.

[15] LEWIS, Ibid., 743.

[16] LEWIS, Ibid., 746.

[17] Cf. LEWIS, 2003, pp. 73-81.

[18] LEWIS, Ibid. 746.

[19] LEWIS, Ibid. 745.

[20] TOLKIEN, 2006, p. 65.

[21] LEWIS, 2010, p. 56, 57.

[22] CHESTERTON, op. Cit., p. 101.

[23] TOLKIEN, Op. Cit., p. 69.

[24] LEWIS, 2010, p. 196.

[25] TOLKIEN, Op. Cit., p. 77, 79.

[26] TOLKIEN, Ibid., p. 81.

[27] LEWIS, 2010, pp. 729,730.

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