O conhecimento como formação intelectual
Uma reflexão baseada no filme
The Great Debaters, de Denzel Washington
“Todos os homens , por natureza, tendem ao saber[1].” (Aristóteles. Metafísica, I)
A frase acima é de Aristóteles[2], filósofo grego e um dos mais importantes pensadores de todos os tempos. Esta é a primeira sentença de sua obra máxima, a Metafísica – na verdade um conjunto de livros que tratam das questões que estavam além da física, do grego: tà metà tà physiká. Figura nesta obra o que Aristóteles considerava de maior relevância na investigação filosófica: a causa primeira de todas as coisas. Portanto, ter o conhecimento citado logo na primeira sentença de sua obra máxima nos dá uma idéia de sua extrema importância.
O que o mestre de Estagira diz é que a tendência[3] para o conhecimento, para o saber como formação intelectual está na natureza do ser humano. E, se levarmos suas palavras realmente a sério, podemos dizer que todo aquele que se recusa à busca do conhecimento – e aqui acrescento, a excelência no saber – está contra sua própria natureza.
A epígrafe de Aristóteles não é fortuita. Suas formulações na área da Lógica e da Retórica dão forma ao modelo de debates do filme The Great Debaters [O Grande Desafio], segundo longa dirigido por Denzel Washington – onde também atua como protagonista. O filme conta história do professor Melvin Tolson (1898-1966), professor e poeta, e sua famosa equipe de debates do Wiley College, uma faculdade para negros, na década de 1930.
“A Lógica é a arte do pensamento, e a Retórica é a arte de comunicar o pensamento de uma mente à outra, ou a adaptação da linguagem à circunstância”[4], escreve Irmã Miriam Joseph, autora de O Trivium (É Realizações, 2008). Estas duas “disciplinas”, somadas à Gramática, fazem parte da educação tradicional liberal da Idade Média (aprox. ano 800) conhecida como TRIVIUM[5]. O Trivium, juntamente com o Quadrivium (Aritmética, Geometria, Astronomia e Música), formava o conjunto das sete Artes Liberais[6], cujo intuito era fornecer uma educação sólida para um indivíduo.
Irmã Mirian Joseph (1898 – 1982), uma freira e professora norteamericana, recuperou o Trivium para ensiná-lo num colégio nos EUA na década de 1930, pois entendeu a diferença entre os saberes técnicos, utilitários e o conhecimento fornecido pelas Artes Liberais.[7]
O que vemos no filme são alunos selecionados entre os melhores, treinados na arte da persuasão (Retórica) e do pensar correto (Lógica). E mais, era preciso um preparo não só técnico, mas cultural, acima da mera instrução. Era preciso rigor científico de pesquisa, o que só um conhecimento integrado, “generalista”, oferece. O filme, baseado em fatos reais, mostra como o conhecimento permitiu que jovens negros, numa época de extrema segregação, quebrassem os paradigmas sociais da época (herança dos muitos anos de escravidão) e ultrapassassem a barreira racial que separava brancos e negros. Foram desbravadores de uma experiência transformadora no mundo acadêmico da época, pois permaneceram invictos por dez anos e venceram uma das melhores faculdades “brancas” dos EUA (University of Southern California – no filme, retratada como a Harvard University).
Gustave Thibon (1903 – 2001), filósofo francês, dizia existir uma grande diferença entre a Instrução e a Cultura; e que, apesar das duas serem aquisição de conhecimentos, a Cultura exigia a participação vital, a vivência interior do sujeito[8]. Por isso, há um processo complexo no instruir-se, no educar-se.
Dora Ferreira da Silva (1918 – 2006), poeta brasileira, descreve em versos o sofrimento e o desabrochar do saber:
EDUCAR-SE
Educar-se na ausência
nas portas seladas
de maçanetas que giram sozinhas.
No mistério educar-se
ultrapassando horizontes
sem nada pedir:
a boca resolve-se
em silêncio.
Silêncio é esquecimento
do que passou tão depressa
para o passo da alma.
Tristeza desfez-se em brumas
alegria súbito acendeu-se
num raio oblíquo
e as estrelas vieram
definitivas. [9]
Uma vida intelectual consistente, que faça diferença na sociedade, exige muito esforço. A ideia equivocada do “hábito de leitura” não ajuda quem quer construir uma base sólida de conhecimentos, pois não se trata simplesmente de ler, mas o que ler e como ler. C. S. Lewis – acadêmico genial, famoso pela série de livros As Crônicas de Nárnia – escreveu que há uma grande diferença entre receber e usar uma obra de arte – em nosso caso, aqui, a Literatura[10]. Porém, essa exigência mínima para uma formação intelectual consistente gerará frutos não só naquele que estuda e se aplica, mas em todos à sua volta.
No contexto do filme, não só os quatro alunos (Henry Lowe, Samantha Booke, James Farmer Jr. e Hamilton Burgess) merecem destaque, mas toda uma geração de negros americanos, citados no início do filme pelo professor Melvin Tolson (Washington), que iniciaram um movimento intelectual e cultural extremamente rico no Harlem, bairro negro dos EUA. Nomes como os poetas Gwendolyn Bennett, Countee Cullen e Langston Hughes, bem como W. E. B. Du Bois – o primeiro negro a doutorar-se (Ph.D.) em Harvard – influenciaram e transformaram a história não só dos negros americanos, mas de todos os EUA. O Harlem Renaissance, como este movimento ficou conhecido, foi o embrião de iniciativas importantíssimas, tais como o Movimento pelos Direitos Civis, de Martin Luther King Jr.
Mas vale também a ressalva de dizer que o conhecimento integra e segrega, pois, ao nos instruirmos com essa profundidade, saímos da camada comum, somos alçados a um nível de compreensão diferenciado da realidade e tornamo-nos mais críticos e seletos em nossas escolhas. Por outro lado, abre-se para nós um acesso cultural elevado, para apreciação de coisas que dificilmente teríamos condições de apreciar e vivenciar tendo uma instrução de nível, digamos, mediano. Como diz C. S. Lewis:
“Aqueles de entre nós que toda a vida têm sido verdadeiros leitores raramente se dão conta da enorme extensão do nosso ser que ficamos a dever aos autores. Compreendemo-lo melhor ao falar com um amigo iliterato. Pode ser um poço de bondade e sensatez, mas habita um mundo estreito, onde nos sentiríamos sufocados. O homem que se contenta com ser apenas ele próprio, e por conseguinte em ser menos, vive numa prisão. Para mim, os meus próprios olhos não são suficientes, quero ver através dos olhos de outras pessoas. A realidade, ainda que vista através dos olhos de muitos, não é suficiente. Quero ver a que outros inventaram. Nem os olhos da humanidade inteira são suficientes […] Ao ler a grande literatura, torno-me mil seres diferentes, sem deixar de ser eu próprio. Como o céu noturno no poema grego, vejo com uma miríade de olhos, mas sou sempre eu que vejo. Aqui, tal como no ato religioso, no amor, no ato moral e no saber, transcendo-me a mim próprio”. [11]
Portanto, o que temos diante de nós não é só um incentivo à leitura e à instrução, mas um desafio a ser vencido; uma porta que se abre para a formação intelectual sólida, para um conhecimento cultural profundo, capaz de transformar o indivíduo e – por que não? – a sociedade.
Paulo Cruz
[1] ARISTÓTELES. Metafísica. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2005. Saber, aqui, vem do grego ειδω (eido), que tem como um dos significados: ser perito em, tomar forma (formar-se).
[2] Aristóteles: filósofo grego nascido em 384/383 a.C., em Estagira, na Macedônia. Foi aluno de Platão (outro grande filósofo e com quem forma a dupla de maior destaque do pensamento ocidental) e ficou em sua Escola, a Academia, durante vinte anos; saindo após a morte deste para fundar sua própria Escola, o Liceu, em 334.
[3] Tendência: n substantivo feminino
a. aquilo que leva alguém a seguir um determinado caminho ou a agir de certa forma; predisposição, propensão
b. disposição natural; inclinação, vocação
(Fonte: Dicionário Houaiss. Grifos meus.)
[4] JOSEPH, Irmã Miriam. O Trivium. São Paulo: É Realizações, 2008, p. 21.
[5] Trivium significa o cruzamento e a articulação de três ramos ou caminhos e tem a conotação de um “cruzamento de estradas” acessível a todos (Ibid. apud Catholic Encyclopedia, vol. 1, s.v., “The Seven Liberal Arts”)
[6] “A educação prospera mais quando se a procura livremente. Este é o sentido da palavra ‘liberal’(de líber, livre), nas Sete Artes Liberais da Idade Média, que eram ensinadas ao homem livre, em oposição às artes ‘iliberais’ presa, controlada por guildas (corporações de ofícios)”. José Monir Nasser, In: Ibid. p. 12.
[7] “As artes utilitárias ou servis permitem que alguém sirva a – outrem, ao estado, a uma corporação, a uma profissão – e que ganhe a vida. As artes liberais, em contraste, ensinam como viver; elas treinam uma pessoa a erguer-se acima de seu ambiente natural para viver uma vida intelectual e racional, e, portanto, a viver uma vida conquistando a verdade”. (Ibid, p. 20)
[8] “Uma pessoa pode ser muito culta sem ser muito instruída, e pode ser muita instruída sem ser culta. Mais precisamente, toda cultura implica um mínimo de instrução, mas a recíproca não é verdadeira: pode-se ter muita instrução e não ter cultura alguma. É possível ser erudito ou “sábio” de uma maneira puramente mecânica e por efeito de uma doutrinação puramente externa”. (THIBON, Gustave. Palestra proferida em Lausanne, em 18 de abril de 1965. Tradução: Fernando Marques.
[9] SILVA, Dora Ferreira. Cartografia do Imaginário. São Paulo: TA Queiroz Editor, 2003, p. 120
[10] “Uma obra de arte tanto pode ser ‘recebida’ como usada. Quando é ‘recebida’, exercemos o nossos sentidos e imaginação, bem como vários outros poderes, de acordo com um padrão inventado pelo artista. Quando a ‘usamos’, tratamo-la como um [mero] auxílio para nossas próprias atividades (…) ‘Usar’ é inferior a ‘receber’, porque a arte, quando mais usada que recebida, limita-se a facilitar, abrilhantar, aliviar ou suavizar a nossa vida, mas sem nada lhe acrescentar”. (LEWIS, C. S. A experiência de ler. Lisboa: Elementos Sudoeste, 2003, p. 123, 124)
[11] LEWIS, C. S. A experiência de ler. Lisboa: Elementos Sudoeste, 2003, p. 189-190.